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Universidade Federal do Oeste do Pará

Ultima atualização em 18 de Outubro de 2019 às 10:06

Timbó, planta da raiva: estudo revela relação dos Suruwaha com planta ictiotóxica da Amazônia


“A planta da raiva: timbó e envenenamento nos Suruwaha do Purus” é o título do artigo publicado pelo antropólogo Miguel Aparicio Suárez, professor do Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), no livro “O uso de plantas psicoativas nas Américas”, lançado este ano pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio da Editora Gramma.

Organizada pelas pesquisadoras Beatriz Caiuby Labate e Sandra Lucia Goulart, a publicação reúne um conjunto de estudos realizados por diversos antropólogos sobre os vários tipos de uso de plantas psicoativas pelas populações indígenas das Américas. “Eles têm uma relação entre sujeitos. Para os povos indígenas as plantas são sujeitos que interagem com a vida humana também. Não é apenas uma relação humano-vegetal, e muito menos uma relação com substâncias apenas químicas ou alucinógenas. São sujeitos interagindo com sujeitos, que são pensados como pessoas”, explica o professor da Ufopa.

O artigo “A planta da raiva” enfoca o timbó (Deguelia sp.), uma planta ictiotóxica usada para pescaria pelos Suruwaha, população indígena de recente contato que habita no interflúvio dos rios Purus e Juruá, no estado do Amazonas. “É um grupo sob proteção da Funai. O entorno da região ainda não tem muitos impactos por enquanto. Acho que mantendo uma política de proteção, os Suruwaha poderão continuar mantendo sua autonomia, mas sem dúvida é uma população bastante vulnerável”, afirma Miguel Aparicio.

“O texto é resultado da pesquisa etnográfica que venho desenvolvendo entre os Suruwaha desde 1995. Pesquiso sobre as plantas venenosas dos Suruwaha, que são basicamente os venenos de pesca, conhecidos como timbós; e os venenos de caça, conhecidos como curares”, explica  Aparicio, que é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro e pesquisador do projeto da Unesco “Salvaguarda do Patrimônio Linguístico e Cultural de Povos Indígenas Transfronteiriços e de Recente Contato da Região Amazônica”.

Cultivo de venenos - O timbó é uma leguminosa da qual é extraído um líquido tóxico utilizado em pescarias. Segundo o professor da Ufopa, em toda a Pan-Amazônia há espécies ictiotóxicas, conhecidas como timbós e tinguis, que são utilizadas principalmente em atividades de pesca.

Os Suruwaha utilizam uma única espécie de timbó, a Deguelia utilis, que é cultivada pelo grupo, sendo até hoje plantada nos roçados. As raízes são arrancadas e amarradas em feixes, triturados na beira dos igarapés por causa da pescaria. “Eles trituram esses feixes, batendo com paus na beira do igarapé, para conseguir a captura dos peixes por asfixia. Depois o peixe é assado, cozido, moqueado no uso convencional que se tem na Amazônia”.

Homens e mulheres têm participação nos roçados, que são familiares. O casal e os filhos trabalham no roçado. Há tarefas que são mais masculinas, como a derrubada do roçado, mas o cuidado com as plantas é tanto feminino quanto masculino. E a pesca por timbó é praticada por homens e mulheres. “As mulheres também fazem pescarias cotidianas, muitas delas em igarapés pequenos, também com feixes de raízes de timbó”.

“Nessa relação dos Suruwaha com as plantas-pessoas, eles fizeram uma domesticação do timbó: provavelmente, a interação dos Suruwaha com essa planta, de alguma maneira, modelou o timbó também”, explica. “A Amazônia não é uma floresta virgem, intocada, mas uma floresta que foi manejada durante milhares de anos pelas populações indígenas, que modelaram e construíram a paisagem. Porém, do ponto de vista indígena, as plantas domesticadas, de alguma maneira, não aceitam ser controladas pelos seres humanos e, por isso, podem ter reações reversas”, revela Miguel Aparicio.

Homens-peixes – Segundo o pesquisador, na relação com o timbó, atualmente os Suruwaha se sentem atacados pela planta. Para eles, é o timbó quem instiga a morte, principalmente dos jovens. “O timbó é pensado como um xamã, e essa planta-xamã é quem produz a morte dos Suruwaha contemporâneos. Para os Suruwaha, eles não estão se suicidando, mas é a planta que provoca raiva nas pessoas até a morte”.

Os jovens, a partir da adolescência, são os mais afetados pela ira do timbó. Também há registro de mortes de adultos já casados, estabilizados, com 20, 30 anos. “De forma paradoxal, eles pensam isso não nos termos da nossa cultura, como suicídio, mas como uma relação conturbada com uma planta psicoativa cultivada nas roças. Nessa relação xamânica com o timbó, que eles controlam para a pesca, eles vivem de maneira dramática com a planta que causa a morte deles”.

Por causa dessa relação com o timbó, os Suruwaha geraram uma concepção segundo a qual eles estão se transformando em peixes, porque o timbó é uma planta que se planta para pescar. “Na relação psicoativa com o timbó, eles concebem que, ao morrer pela ação da planta, eles estão virando peixe. Temos, na concepção Suruwaha, um povo-peixe. Um povo que se concebe como humanos se transformando em peixes, pela ação psicoativa da planta que eles cultivam”.

Atualmente o grupo indígena é composto por 150 pessoas, que falam unicamente a língua nativa. “Os únicos falantes da língua Suruwaha são os próprios Suruwaha”, afirma Miguel Aparicio, que também aprendeu a língua. “No geral, essa região entre os rios Purus e Juruá tem uma família linguística isolada, chamada Arawá, composta por oito línguas com pouquíssima pesquisa”.

Os Suruwaha vivem em uma área bem distante em relação aos centros urbanos e aos grandes rios, como o Purus e o Juruá. Eles possuem locais fixos para moradia e vivem em grandes malocas, em áreas próximas, o que permite o contato cotidiano entre os grupos. “Nesses locais eles moram todos juntos, em uma única maloca, grande, circular. No geral, uma maloca dista um ou dois quilômetros da outra”, explica. “Eles têm locais fixos para moradia, mas para a pescaria eles se deslocam muito, de dois a três dias, para fazerem pescarias muito maiores".

Os Suruwaha tiveram no começo do século XX experiências de massacre, com redução drástica de sua população. Isso fez com que eles cancelassem todas as suas relações com os povos vizinhos, isolando-se. “Entre 1920 a 1980, eles viveram em isolamento absoluto, sem contato com a sociedade brasileira, nem com outros povos indígenas”, explica. “Foi quando surgiu uma prática generalizada de suicídio por envenenamento por timbó. Em situações de conflito, e muito afetados por esse trauma do massacre que sofreram nos anos 20, eles ingerem o veneno que plantam nos roçados para a pesca”.

Livro – De acordo com a editora Gramma, a publicação “O uso de plantas psicoativas nas Américas” aborda etnografias originais sobre vários tipos de uso de plantas psicoativas, incluindo ayahuasca, cogumelos mágicos, jurema, coca, tabaco, toé, Cannabis, rapé, sananga, kambô, yopo, timbó e bebidas como o caxiri. “Os capítulos apresentam uma diversidade de noções e práticas relativas ao uso de tais plantas, destacando os contextos de usos indígenas e não indígenas, bem como intermediações e fluxos complexos entre eles. As contribuições discutem vários temas, como xamanismo, agência, pensamento indígena, gênero e desempenho”, informa o site da editora.

“No livro fica claro que esse movimento geral da relação das plantas psicoativas com as pessoas é uma relação complexa, porque tanto as plantas instigam a imaginação, o sonho e o conhecimento de outros mundos para as pessoas, quanto elas têm, as vezes, relações de conflito com os humanos”, explica Miguel Aparicio.

Para o antropólogo, as plantas psicoativas, em geral, estão no centro do interesse dos povos da floresta, com uma importância talvez maior do que as plantas alimentares. “Se relacionar com plantas para acessar outros mundos foi mais importante do que comer. E as plantas psicoativas demonstram isso”, afirma. “O sonho, a intoxicação, a embriaguez, todos esses efeitos da relação com as plantas psicoativas foram cultivados culturalmente por esses povos, como parte importante da condição humana”.

Mais informações sobre o livro “O uso de plantas psicoativas nas Américas” na página https://www.gramma.com.br/produto/o-uso-de-plantas-psicoativas-nas-americas/.

Maria Lúcia Morais - Comunicação/Ufopa

14/10/2019

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